ESBOÇO-DRAFT PARA TEXTO INTRODUTÓRIO
XII
KANT: IDEALISMO TRANSCENDENTAL
Um
professor alemão certa vez notou que na filosofia moderna existem grandes
ilhas, mas somente dois continentes: Kant e Hegel. Como efeito disso, uma
pessoa pode passar a vida inteira explorando um desses continentes sem chegar a
conhecê-lo por completo.
Essa
parece-me uma avaliação um tanto exagerada, para não dizer facciosa. Kant e
Hegel construíram sistemas extremamente ambiciosos, mas se a verdade desses
sistemas faz justiça à pretensão é algo questionável. É difícil não concordar
com P. F. Strawson, que no prefácio do mais influente ensaio crítico sobre a
obra máxima de Kant, a Crítica da Razão Pura, escreve ter lido esse
livro com um “sentimento misto de grande insight e de grande mistificação”. Com efeito, o sistema
arquitetônico desenvolvido por Kant e legitimado pela universidade prussiana
cobra um preço em artificialidade. As peças do quebra-cabeça só parecem se
encaixar pelo auxílio de uma densa nuvem de obscuridade semântica reforçada por
uma apresentação rebuscadamente dogmática. Também precisamos distinguir entre
profundidade e amplitude. Um filósofo como Berkeley teve insights tão profundos
e originais quanto os de Kant. Mas não dedicou mais do que uma pequena parte de
sua vida à reflexão filosófica. Kant dedicou toda a sua longa vida ao
aprendizado e à investigação.
A obscuridade em filosofia existe desde seus
primórdios e tem suas razões de ser. Uma delas é quando o filósofo possui
realmente uma variedade de insights insuficientemente desenvolvidos e não sabe
como relacioná-los, embora tenha consciência de que existe algo que os
relacione. Podemos encontrar esse embaralhamento polissêmico de ideias já em filósofos
como Parmênides e Anaxágoras. Ou seja, a estratégia da vaguidade e abertura
discursiva pode ser lícita quando se tem coisas importantes a dizer, mas não se
tem como formulá-las adequadamente, o que em muitos momentos parece é certamente
o caso do próprio Kant. Como notou Wittgenstein, ele também um filósofo tão
ambíguo quanto genialmente sugestivo, em um conselho dado a si mesmo sobre como
filosofar:
Não se deixe envolver por problemas parciais, mas
sempre ascenda para onde houver uma concepção livre de todo o único grande
problema, mesmo se essa concepção ainda não for clara.
Se
a filosofia não pode ser mais do que saber conjectural, ensaio especulativo
acerca daquilo sobre o que não nos encontramos em posição de obter conhecimento
pleno, como procurei mostrar no primeiro capítulo, então a observação de
Wittgenstein é perfeitamente adequada.
Há também razões mais comezinhas. Dentre
todos os filósofos modernos aqui considerados, Kant foi o primeiro grande filósofo
acadêmico. Hume foi um grande estilista que escrevia para leigos cultos. Precisava
ser claro. Diversamente disso, Kant foi um professor, falando para alunos do
alto de uma cátedra e escrevendo para colegas versados em filosofia em um
ambiente acadêmico que devia ser provinciano e pernóstico.
Há
ainda uma razão comezinha para a pretensão de profundidade obtida por meio de
rebuscada obscuridade na obra de um filósofo como Kant. Ele servia ao reino da
Prússia, um estado autoritário e militarizado, com reis despóticos, onde a
liberdade de expressão era severamente restringida – uma situação retrógrada se
comparada à inglesa. Certa vez um príncipe foi visitar Kant na universidade
para oferecer-lhe honrarias. Assim, a seu modo ele também servia à glória do
estado prussiano, devendo em filosofia fazer o melhor para condizer com essa função
ideológica.
Um
outro filósofo acadêmico que serviu ao reino da Prússia foi Hegel, que chegou a
ser professor em sua capital, Berlim. Hegel foi ainda mais obscuro do que Kant
e seu sistema ainda mais ambicioso. Ele colocava a filosofia acima da religião
e, quando um colega seu foi expulso da universidade sob acusação de ateísmo,
passou a escrever de forma ainda mais obscura. O contraponto estilístico de
Hegel foi seu concorrente Shopenhauer, um filósofo que não era acadêmico e escrevia
de modo tão claro quanto possível.
A escrita macarrônica, intencionalmente vaga
e obscura, mas dotada de um tom quase profético, fez escola na Alemanha:
Husserl e seu pupilo rebelde, Heidegger, foram bons exemplos. Isso não
significa necessariamente má filosofia. O gênio de Kant e Hegel é inegável, assim
como a importância pouco reconhecida de Husserl e até mesmo a relevância de
Heidegger para a antropologia filosófica. Trata-se de uma questão de medida.
O método
de fazer poeira com palavras de modo a aparentar profundidade foi importado
para a França por Sartre e Merleau-Ponty, e mais tarde por acadêmicos pós-modernistas,
como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida. O problema é que aquilo
que era uma mensagem filosoficamente rica e profunda, mesmo que encoberta sob
um denso nevoeiro retórico que a deveria tornar invulnerável, transformou-se em
Deleuze em experimentação com a linguagem onde cada vez menos havia a ser dito,
e em Derrida em uma mera simulação retórica dos procedimentos filosóficos, que
quando trocada em miúdos, na melhor das hipóteses se demonstrava falsa e, na
pior, uma algaravia estilisticamente proficiente, mas sem sentido.
Uma maneira de tentar salvar escritos como
os de Deleuze e Derrida é admitir seu valor estético; eles são como as
instalações em artes plásticas. Não obstante, quando consideramos o pensamento
pós-moderno como arte surge um problema. É que a arte é uma ilusão que se reconhece
como tal. Cada um retira da obra de arte o que acha melhor. Como vimos ao
considerarmos as ideias de Collingwood, a grande arte possui um
potencial ampliador de nossa consciência. Mas esse distanciamento não parece
ser possível na filosofia, posto que ela tem como objetivo aproximar-se da
verdade sobre seus objetos. Por isso não podemos aceitar de modo igual o
tratamento de um mesmo objeto por teorias filosóficas que se contradizem. Mas
somos perfeitamente capazes de admirar uma pintura de Goya ou de Picasso e ao
mesmo tempo uma pintura de Rafael ou de Chagall, sem sermos forçados a fazer
comparações valorativas.
Uma última observação diz respeito aos
efeitos deletérios do pós-modernismo. Ele ensina as pessoas a fazerem de conta
que estão empenhadas em uma investigação filosófica séria quando não fazem muito
mais do que desenvolver experimentos retóricos. Como notou Noam Chomsky, isso é
particularmente danoso em países subdesenvolvidos, sem uma tradição cultural
forte, onde a pseudoprofundidade e o experimentalismo discursivo podem passar facilmente
por grandes aquisições culturais.
1
Não
há muito a se dizer sobre a vida de Kant (1724-1804). Ele nasceu de uma família
de seleiros, sem recursos nem instrução. Eles eram pietistas, um ramo radicalizado
do luteranismo, cujos valores maiores eram “o dever, o trabalho e a oração”. Aos oito anos ele entrou
para uma altamente disciplinada escola pietista, que o fez mais tarde se recordar
da infância como um período de escravidão, mas que lhe deixou marcas profundas
que se refletiram em sua filosofia. Aos poucos ele galgou os degraus da vida
acadêmica, tornando-se um aclamado professor. A monumental Crítica da Razão
Pura foi sua primeira grande obra, publicada quando tinha 58 anos de idade.
Só depois disso vieram as outras obras filosóficas relevantes, como a Crítica
da Razão Prática, a Metafísica dos Costumes e a Crítica do Juízo.
Kant
era uma pessoa altamente disciplinada. Há muitas anedotas a seu respeito.
Conta-se, por exemplo, que era inflexível em fazer seu passeio diário às 4
horas da tarde sob qualquer tempo. Uma vez, precisando muito terminar um
artigo, chegou o momento do passeio. Grande conflito! Felizmente Kant teve uma
ideia que lhe permitiu resolver o problema. Ele postou o tinteiro uns sete
metros de distância da mesa onde escrevia, de modo que a cada minuto ele precisava
caminhar até o tinteiro para encher de tinta sua pena de ganso. Esse
estratagema simples lhe permitiu dar seu passeio e escrever o artigo ao mesmo
tempo.
Apesar
de seu rigor e inflexibilidade prussianos, ele era uma pessoa bastante
sociável. São conhecidos os almoços para os quais convidava amigos, geralmente
comerciantes locais e nunca professores universitários. Goethe o admirava e
quis conhecê-lo pessoalmente. Kant fez tanta dificuldade que Goethe teve um
acesso de raiva e desistiu da ideia. Kant nunca saiu de sua cidade natal, nem se
casou. Parece que preferiu seguir o conselho de um amigo inglês, investindo seu
dinheiro em um banco, o que acabou por revelar-se a escolha certa.
2
O
mais importante em Kant é sua Crítica da razão pura. Como Locke e Hume, ele também
quis estabelecer a natureza e os limites daquilo que pode ser conhecido,
fazendo isso com o objetivo de criticar as pretensões da metafísica dogmática, por
ele entendida como uma ciência que pretendia demonstrar a imortalidade da alma,
o livre arbítrio e a existência de Deus. Ele queria explicar porque a
metafísica dogmática nunca conseguiu apresentar mais do que argumentos de valor
duvidoso.
O
projeto filosófico de Kant foi profundamente original e inovador, podendo ser
entendido como um ambicioso esforço de superação, tanto do racionalismo continental
quanto do empirismo britânico, mesmo que seus resultados pendessem para o racionalismo.
Do racionalismo ele queria superar a metafísica dogmática, que aprendera sob a
influência maior de Christian Wolff, um filósofo influenciado por Leibniz. Já
do empirismo ele queria superar principalmente o ceticismo de Hume, mesmo que
esse o tenha acordado de seu sono dogmático. Ainda que muito poucos acreditem
que Kant tenha alcançado seu objetivo último, é certo que podemos aprender pelo
conhecimento do trajeto percorrido.
Um racionalista prototípico como Leibniz era
guiado pela ideia de que, ao menos em princípio, somos capazes de obter
conhecimento sobre o inteiro mundo empírico baseados apenas nos poderes da
razão. Afinal, as suas mônadas (e aqui falamos de nossas mônadas-almas), além
de serem eternas, já conhecem o universo inteiro a priori, mesmo que de
modo inconsciente. Por outro lado, um empirista prototípico como Locke
acreditava que todo nosso conhecimento é todo proveniente da experiência
empírica, incluindo mesmo os princípios lógicos.
O primeiro passo dado por Kant para superar
a oposição entre racionalismo e empirismo foi o de revisar a distinção empirista
entre associações de ideias e questões de fato (Hume), correspondente à
distinção racionalista entre as verdades da razão e as verdades de fato
(Leibniz). Para Kant o que existe não é uma dicotomia, mas uma tricotomia entre
(i) juízos analíticos (a priori), (ii) juízos sintéticos a posteriori
e (iii) juízos sintéticos a priori. Vejamos como ele define cada um
deles.
Juízos analíticos estão no lugar das
relações de ideia em Hume. Mas Kant os define à maneira de Leibniz: eles são
aqueles nos quais o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Eles
são a priori, posto que não se originam da experiência, mesmo que dependam
dela. O exemplo dado por Kant é: “Todos os corpos são extensos”. Simplesmente encontra-se
na definição de um corpo que ele deve ser extenso. Eles também se mostram a priori
porque são necessários e sua negação conduz a uma contradição: “Nem todos os
corpos são extensos” é um enunciado necessariamente falso. Os juízos analíticos,
por serem a priori, são para Kant necessários e estritamente universais, mas
sob um preço muito alto, posto que são incapazes de ampliar nosso conhecimento.
Eles nada nos dizem sobre o mundo, dizendo respeito apenas a relações
lógico-conceituais. Exemplos são “Triângulos tem três lados, “Vermelho é uma
cor”, “Solteiros são não-casados”.
Os juízos sintéticos são aqueles nos quais o
conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito. Por essa razão a
descoberta de sua verdade parece sempre demandar experiência, tornando-os a
posteriori. O exemplo de Kant é: “Todos os corpos são pesados”. Sabemos disso
por experiência, de modo que negação não é contraditória. Não é impossível que
nem todos os corpos sejam pesados. Na verdade, corpos físicos que se encontram
fora da ação gravitacional não possuem peso, apesar de possuírem massa. Os
juízos sintéticos a posteriori são ampliativos. Eles nos dizem algo sobre o
mundo e constituem a maior parte daquilo que diariamente ajuizamos. Exemplos: “O
céu é azul”, “Londres é a capital do Reino Unido”, “Sapos não comem insetos que
não se movem”...
Contudo,
para Kant há uma espécie de juízo em que o conceito do predicado não está
contido no conceito do sujeito, mas que mesmo assim é necessário e universal.
Esse seria para ele o caso das leis científicas da física newtoniana, como a
que nos informa que a força gravitacional entre dois corpos é diretamente
proporcional à multiplicação de suas massas e inversamente proporcional ao
quadrado da distância entre eles. Outro caso é o das verdades da matemática e
da geometria enquanto aplicadas ao mundo externo. Esses enunciados dizem algo
sobre como o mundo se comporta. Eles não são analíticos, pois são para Kant
ampliadores do conhecimento. Seriam eles sintéticos a posteriori? Um filósofo
como Hume não teria dificuldades em considerar as leis da física como verdades
de fato, ou seja, como enunciados sintéticos a posteriori. E ao considerar os
enunciados da matemática como relações de ideias (i.e., enunciados analíticos)
ele não tinha sequer em mente o problema da aplicabilidade dos mesmos ao mundo
externo. Um empirista posterior, J. S.
Mill, chegou mesmo a considerar os princípios da geometria e mesmo os da
matemática como juízos empíricos (sintéticos e a posteriori), dependentes da
experiência e, portanto, ao menos em princípio passíveis de serem falseados. Não
obstante, para Kant não poderia ser assim. Sob sua perspectiva os princípios da
física, das matemáticas e da geometria de seu tempo deveriam possuir o status
de verdades absolutas: juízos necessários e estritamente universais.
Euclides na geometria e Newton na física haviam decifrado o alfabeto pelo qual
Deus escrevera o livro da natureza.
Diante de tal problema Kant decidiu por uma
terceira via, tão ousada que só um filósofo seria capaz de propor. Ele concluiu
que para bem fundamentar as ciências seria necessário recorrer a uma nova
espécie de juízo: o juízo sintético a priori. Em tal juízo o predicado
não pertence ao sujeito, mesmo assim sendo necessária e universalmente ligado a
ele. Considere um juízo da aritmética como “7 + 5 = 12”. Segundo Kant trata-se
de um juízo sintético a priori, pois o conceito do número doze não está contido
no conceito da soma de 7 e de 5. Isso parece se tornar mais
aceitável quando consideramos somas de números maiores como “389 + 973 = 1362”.
Aqui decididamente não vemos o conceito do predicado “...é igual a 1362” no
conceito da soma em questão. Por isso esses juízos seriam sintéticos. Mas eles
também são a priori por serem necessários e estritamente universais. O mesmo se
poderia dizer de um enunciado da geometria euclidiana como “A reta é a
distância mais curta entre dois pontos”. Para Kant podemos pensar
a linha reta na independência de ser ela a distância mais curta entre dois
pontos (Euclides definiu a reta como “uma linha traçada uniformemente com os
pontos sobre si”). Assim, esse enunciado é sintético, mas a priori, posto que
(para ele) é necessário e universal. O mesmo acontece com os conceitos da
física newtoniana, que na época de Kant era o paradigma da ciência empírica. Um
princípio como o da permanência da matéria era para Kant um juízo sintético a
priori. Ele seria sintético porque o conceito de permanência não está contido
no conceito de corpo material; ele seria a priori porque deveria valer
necessariamente para todos os constituintes materiais do universo. Kant
acreditava na verdade absoluta acerca do mundo empírico, um conceito hoje
rejeitado, considerando que a grande maioria dos filósofos da ciência
contemporâneos é falibilista.
3
O
segundo passo consiste em justificar a existência dos juízos sintéticos a
priori. Trata-se do que Kant chamou de “a grande luz” que o conduziu ao
pensamento crítico, por ele mesmo chamado de “revolução copernicana”. Assim como após
Copérnico, ao invés de o sol circular em torno da terra, a terra passa a
circular em torno do sol, após Kant, ao invés de os objetos circularem em torno
do sujeito do conhecimento é o sujeito do conhecimento que passa a circular em
torno dos objetos. Melhor dizendo: o sujeito do conhecimento passa a ter um
papel ativo na produção do conhecimento. Mais do que isso: o mundo deve obedecer
às leis impostas pelo sujeito do conhecimento de modo a poder ser conhecido naquilo
que lhe é necessário e universal. Nós somos, acreditava ele, os legisladores do
universo! Somos nós que lhe damos forma e estrutura. Eis porque os juízos
sintéticos a priori são necessários e estritamente universais. Eles são
necessariamente aplicáveis porque o mundo, enquanto algo capaz de ser
conhecido, deve seguir os princípios impostos pela nossa matemática, pela nossa
geometria e pela nossa ciência empírica, as quais eram para ele necessárias e
universais, ou seja, não só constituídas por juízos sintéticos, mas também a
priori.
A maior preocupação de Kant não era, porém,
a fundamentação das matemáticas e das ciências empíricas. Ele quis criticar a
metafísica especulativa, demonstrando que a razão pura não é capaz de resolver
questões metafísicas como as da existência de Deus, da eternidade da alma e do
livre arbítrio.
Fundamental para a revolução copernicana é a
subjetivização do mundo da experiência proposta por Kant através da distinção
entre mundo noumênico e mundo fenomênico. O mundo noumênico é o
mundo como ele é em si mesmo, na independência da experiência. Objetivamente
ele é constituído pelo que Kant chamou de coisa em si (Ding an sich), enquanto
subjetivamente ele é constituído por um Eu noumênico (que os metafísicos chamam
de alma), um X distinto do eu empírico considerado por Hume. Nada podemos saber
sobre esses dois polos do impensável. Nada podemos saber sobre a coisa em si mesma,
sobre o X da subjetividade transcendental ou sobre o mundo noumênico que os
encerra. Tudo o que podemos saber é sobre o mundo tal como ele aparece a nós, o
mundo fenomênico das aparências (a palavra grega ‘pheinomenon’ significa
aparência). Essa distinção é fundamental para a revolução copernicana. Se somos
nós que legislamos sobre o objeto do conhecimento, então esse objeto precisa
ser de algum modo “subjetivizado”. É pelo fato de que o objeto empírico do
conhecimento pertence ao mundo tal como ele nos aparece e não tal como ele é em
si mesmo que a ele pode ser aplicada a revolução copernicana. O mundo
fenomênico passa a ser, em sua forma e estrutura, dependente do sujeito da
experiência.
Do ponto de vista epistêmico, o que Kant fez
foi ancorar o mundo humiano das ideias soltas em um mundo noumênico
incognoscível. Locke tem sido geralmente considerado um realista indireto.
Berkeley orgulhava-se de seu idealismo, enquanto Hume foi um idealista envergonhado.
Kant foi o que poderíamos chamar de um realista indireto por postulação. O
mundo como ele é em si mesmo, o mundo noumênico, é um algo sobre o qual a razão
humana nada é capaz de dizer. Trata-se de uma forma minimalista de realismo
indireto.
4
Sobre
a introdução acima resumida há um número de objeções a serem feitas. A
primeira, hoje bastante óbvia, diz respeito à definição de juízo analítico. Na
época de Kant a lógica clássica ainda não tinha alcançado o extraordinário
desenvolvimento resultante da descoberta do cálculo dos predicados por Gottlob Frege.
Assim, Kant define esse juízo como se todos os enunciados relativos à nossa
gramática conceitual fossem (ou pudessem ser transformados em) enunciados do
tipo sujeito-predicado. Mas enunciados relacionais em geral não são redutíveis
a enunciados predicativos. Considere o enunciado: “Se João é irmão de Maria
então ambos são filhos dos mesmos pais”, que tem a forma “p → q”. Ele é certamente analítico, pois não depende da
experiência e não pode ser negado sem contradição, mas nós não temos como
reduzi-lo a um enunciado do tipo sujeito-predicado. A solução mais geralmente
aceita hoje é chamar de analítico o enunciado cuja verdade (ou valor-verdade)
depende somente dos significados de suas expressões constitutivas e da maneira
como eles são por elas interligados. Essa correção não representa grande
problema para o que Kant pretendeu demonstrar.
Também é fácil objetar contra seu exemplo
para mostrar que os juízos da aritmética são sintéticos e a priori valendo-se
da lógica fregeana. Considere, por exemplo, o enunciado “7 + 5 = 12”,
considerado por Kant um juízo sintético a priori. Logicamente analisado, ele não
é um enunciado do tipo sujeito-predicado. Ele é um enunciado com o predicado relacional
“...é o mesmo que...”, podendo ser exposto como “7 + 5 é o mesmo que 12”. Nesse
caso não cabe mais a questão de se saber se o 12 não estaria contido em “7 +
5”, pois tanto 7 + 5 quanto o 12 possuem a mesma referência, qual seja, o
número 12. Assim interpretado, esse enunciado é analítico mesmo que não
tenhamos em mente o resultado da soma de 7 com 5 ao considerarmos 7 + 5. A
analiticidade fica mais clara quando consideramos uma soma como “2 + 1 = 3”, em
que parecemos ver o 3 no primeiro lado da identidade. Afinal, o enunciado 2 + 1
= 3 poderia ser analisado ao modo de Leibniz como (1 + 1) + 1 = (1 + 1 + 1),
admitindo que 2 (Df.) = 1 + 1 e que 3 (Df.) = 2 + 1.
Considere agora um enunciado como “A menor
distância entre dois pontos é uma linha reta (na geometria euclidiana)”. Nada
nos impede de definirmos uma semi-reta, no plano euclidiano, como a linha mais
curta entre dois pontos. Nesse caso o predicado nada mais é do que um
desdobramento do sujeito e o enunciado acima poderá ser considerado analítico. Outros
enunciados da geometria euclidiana, como “A soma dos ângulos internos de um
triângulo euclidiano é 1800” exigem demonstração, mas a demonstração
parte de axiomas que não podem ser negados, disso resultando que ela mesma não
pode ser negada.
Há aqui dois pontos bem conhecidos que
precisam ser lembrados. O primeiro é que os enunciados da geometria podem ser tanto
analíticos e a priori quanto sintéticos a posteriori, dependendo de como os consideramos.
Enquanto os consideramos com fazendo parte da geometria euclideana tomada em
abstrato eles são necessariamente verdadeiros, pois decorrem logicamente
de axiomas e postulados aceitos. Eles são analíticos e a priori. Mas quando consideramos
esses mesmos enunciados sob a perspectiva da geometria em sua aplicação ao
mundo real, eles passam a depender de medições empíricas para que a sua verdade
seja atestada, tornando-se sintéticos a posteriori.
A
geometria euclidiana era a única existente nos tempos de Kant, que a considerou
absolutamente verdadeira. Mas apenas cerca de trinta anos após sua morte Lobachewsky
desenvolveu uma geometria hiperbólica, que rejeitava o quinto postulado
de Euclides e na qual a soma dos ângulos de um triângulo é menor do que 1800.
Pouco mais tarde Riemann desenvolveu uma geometria elíptica, na qual o
quinto postulado também é rejeitado e os ângulos de um triângulo resultam em mais
do que 1800. O resultado disso é que não existe apenas uma única geometria,
como Kant pensava.
De um
ponto de vista interno a elas, qualquer uma dessas geometrias é verdadeira e
seus enunciados podem ser considerados analíticos ou derivações analíticas de
seus axiomas. Eles são relações de ideias no sentido de Hume. Seus enunciados
serão necessariamente verdadeiros no sentido de que decorrem de axiomas
aceitos, de modo que suas negações serão contraditórias. Não há razões
intrínsecas para escolhermos um sistema geométrico em detrimento de outro.
É quanto à aplicação da geometria euclideana
ao mundo externo que a revolução copernicana de Kant sofreu um primeiro grande
fracasso. Em 1915 a teoria da relatividade generalizada demonstrou que onde há
corpos massivos e, portanto, gravidade, o espaço-tempo se torna encurvado e só
pode ser calculado pela aplicação da geometria riemanniana. Ou seja, se
traçarmos um triângulo entre a terra, vênus e marte, a soma dos seus ângulos
internos será superior a 1800. Precisamos aqui da distinção entre
geometria pura e aplicada. A validade da geometria aplicada depende da
experiência. A geometria euclidiana apenas parece necessariamente aplicável ao
espaço físico, uma vez que ela nos basta para medirmos o espaço ao nosso redor.
A evolução natural nos dotou da capacidade de aplicarmos naturalmente essa
geometria em nossas ações e de a compreendermos com maior facilidade do que as
geometrias alternativas. Mas a física moderna demonstrou que quando
consideramos grandes distâncias entre corpos massivos a aplicação da geometria
elíptica nos traz resultados mais precisos (a geometria euclideana voltará a
valer em um espaço no qual não há gravidade). Assim, deixa de haver uma razão
kantiana para que a geometria euclidiana seja considerada sintética a priori.
Como geometria pura ela pode ser considerada analítica, ou seja, um
sistema axiomático no qual enunciados se seguem dos axiomas formando um
sistema. Mas como geometria aplicada ela será sintética e a posteriori
se considerada do ponto de vista de sua aplicação ao mundo físico externo, ou
seja, como parte de nossa descrição física do mundo. O sintético a priori
demonstra-se aqui resultado de uma confusão do caráter analítico e a priori da
geometria axiomática com o caráter sintético e a posteriori da geometria
aplicada ao mundo físico.
Um destino semelhante teve a física
newtoniana, que Kant também considerava feita de verdades absolutas. A
relatividade generalizada nos mostrou que a lei da gravidade de Newton é apenas
uma aproximação. O que inteiramente se aplica são leis muito mais complexas,
resultantes da teoria da relatividade geral, que possuem maior poder
explicativo em um mesmo domínio de aplicação. Não sabemos sequer se essas
últimas leis são absolutas, ou se mesmo elas não são apenas uma aproximação.
Como notou Karl Popper, mesmo que alcançássemos a verdade absoluta não
poderíamos saber se realmente a alcançamos. Isso vale para a física, mas talvez
até mesmo para todo nosso conhecimento. Não é logicamente impossível que um dia
acordemos em um mundo encantado, descobrindo que as estrelas não passam de
pirilampos colocados pelos deuses no céu da noite para enfeitar a abóboda
celeste, nossa presente ideia do cosmo não passando de uma fabulosa ilusão.
A conclusão a que chegamos é que mesmo as
leis da física não são constituídas de juízos sintéticos a priori. Elas são
juízos sintéticos a posteriori, podendo sempre em principio ser demonstradas
falsas.
A suposta revolução copernicana de Kant
chega, portanto, a um triste fim e temos boas razões para descartá-la antes
mesmo de considerar seu sistema. Identificamos os princípios da geometria
euclideana devido a capacidades que foram ganhas como efeito da evolução
natural, mas somos capazes de alterar esses princípios, como aconteceu com o
surgimento de novas geometrias. Aqui podemos notar o que parece ser a diferença
entre o entendimento dos problemas por Hume e por Kant. Hume entendeu as
matemáticas (aritmética e geometria) como constituídas de enunciados que são
relações de ideias (ou seja, analíticos) porque ele os pensava em termos de
aritmética e geometria abstratas. Nesse sentido Hume estava certo. E se
quisesse ele poderia ter considerado a geometria aplicada como resultado de
inferências indutivas meramente prováveis, ou seja, como dependentes de juízos
sintéticos a posteriori.
Kant, por sua vez, tinha preocupação com a
aplicação da aritmética e da geometria, acreditando que as verdades da
geometria euclideana fossem absolutas, já que elas eram conhecidas há dois mil
anos. Quanto às leis da física newtoniana, por exemplo, não parecia haver na
época razão alguma para não considerá-las verdades absolutas. Assim, a questão
que a Kant se apresentava era: como justificar a verdade absoluta dos juízos da
matemática e da geometria? A única resposta que encontrou foi a de que seus
juízos são sintéticos a priori. Eles são necessários e universais (a priori),
ao mesmo tempo que são capazes de nos dizer algo sobre o mundo (sintéticos). E
só através da revolução copernicana seríamos capazes de dar conta disso.
A conclusão a que chegamos é que a revolução
copernicana, tal como Kant a concebeu, falhou desde seu início. Ainda pode ser
aceito que a estrutura do mundo, tal como somos capazes de conhecê-lo, possa depender
dos filtros estruturais inerentes ao nosso aparato cognitivo, cabendo a questão
de saber em que medida Kant foi bem sucedido em descobri-los.
5
Kant
quis na Crítica investigar as condições necessárias da experiência, ou
seja, aquilo por meio do que nós damos à experiência sua forma e estrutura, de
maneira a possibilitar sua revolução copernicana. Assim, ele dividiu seu livro
em três partes: a primeira ele chamou de estética transcendental,
onde examinou as formas da intuição sensível, que para ele são o espaço e o
tempo. A segunda parte é a analítica transcendental, onde ele examinou os
juízos do entendimento e seus conceitos fundamentais. A última parte é a dialética
transcendental, onde ele examinou os encadeamentos de juízos em raciocínios
e criticou seu mau uso pela metafísica dogmática.
É importante notar o plausível pressuposto
kantiano de que a experiência requer o trabalho conjunto da intuição sensível e
do conceito. Ou seja: para termos consciência de nossas sensações, não basta
apenas tê-las; é preciso conceptualizá-las através do entendimento. Só sei que
vejo uma mancha vermelha porque apliquei os conceitos de mancha e de vermelho
ao material sensível. Sem isso não há como se reconhecer uma mancha vermelha.
Logo chegaremos a esse ponto.
6
Após
a introdução da Crítica, Kant passou a sua estética transcendental.
A palavra ‘estética’ vem do grego ‘aísthesis’ que significa sensação ou
percepção sensível. Esse sentido era comum na época de Kant, tendo mudado para
o estudo do belo sob influência maior de Baumgarten. Já a palavra
‘transcendental’ diz respeito às condições supremas sob as quais deve ser
submetido qualquer objeto do conhecimento.
Para Kant nós não conhecemos os objetos como
eles são em si mesmos, ou seja, como o que ele decidiu chamar de noumena.
Nós os conhecemos pelas modificações que eles produzem na intuição sensível, a
dizer, no domínio das aparências (Erscheinungen) ou fenômenos (phainómena).
Essas modificações possuem matéria e forma. A matéria é aquilo
que é impresso nos sentidos pelo que lhes é externo. Ela é o material sensível.
É tentador dizer que se trata de sensações como as das cores, da dureza, do
calor e do frio, do gosto ou do som. Mas isso seria enganoso, pois para
identificarmos sensações precisaremos aplicar conceitos, os quais já pertencem
ao domínio do entendimento. Tudo o que se pode dizer é que a matéria é aquilo que
é impresso nos sentidos pela coisa-em-si. O material sensível vem do objeto, o
que o torna a posteriori. Já a forma é aquilo que o sujeito imprime ao
material sensível, as sensações, de maneira a organizá-las.
Quando consideramos a forma da intuição sensível, abstraindo dela o material
sensível, temos o que Kant chama de a forma da intuição pura, que é constituída
pelo espaço e pelo tempo. Espaço e tempo vêm do sujeito sendo,
portanto, a priori, ou seja, intuições puras necessárias e universais.
O espaço é para Kant único e infinito, assim
como o tempo, o que significa que ele aceita a concepção newtoniana do espaço e
do tempo.
Espaço e tempo são intuições (Anschauungen) não conceituais, subjacentes
aos objetos dos quais temos conceitos. O espaço é uma intuição subjacente aos
objetos externos porque para, segundo Kant, podemos imaginar que eles
desapareçam, mesmo assim permanecendo o espaço, o mesmo se dando com o tempo. O
espaço é a forma da intuição externa, de modo que todas as sensações nos
parecem extensas. Como as formas geométricas se dão no espaço isso justifica o
caráter sintético a priori da geometria. Quanto ao tempo, ele é a forma da
intuição interna, de modo que todas as sensações se dão no tempo. Como ao fazermos
cálculos e contarmos séries numéricas precisamos de tempo, isso justifica para
ele o caráter sintético a priori da aritmética e da matemática em geral. Kant rejeitou
com isso a concepção leibniziana de espaço e o tempo, segundo a qual eles
existem na independência de nossa intuição sensível, como entidades relacionais
objetivas e inerentes às coisas e suas qualidades.
7
Em
sua História da Filosofia Ocidental Bertrand Russell fez algumas
objeções aos argumentos de Kant em defesa da transcendentalidade do espaço e do
tempo. Ele observou que não temos nenhuma ideia do que sejam as intuições do
espaço e do tempo infinitos ou subjacentes aos objetos: não somos capazes, após
retirarmos todos (realmente todos) os objetos, de conceber um espaço
vazio, como Kant pretendeu. Kant também deixa inexplicada a razão de organizarmos
as intuições do espaço de uma maneira e não de outra. Como Russell observa:
O que me induz a arranjar os objetos da percepção como
eu faço e não de outra maneira? Por que, por exemplo, eu sempre vejo as pessoas
com os olhos sobre as suas bocas, e não debaixo delas? De acordo com Kant (...)
nada nas coisas corresponde aos arranjos que existem em nossa percepção.
Note-se
que isso vale para o material sensível conceptualizado pelo entendimento. Algo
semelhante podemos dizer acerca do tempo. Vemos o raio e depois de alguns
segundos ouvimos o trovão; mas sabemos que o raio e o trovão ocorrem de modo
praticamente simultâneo. Como explicar essa simultaneidade se ordenamos as
intuições temporais internamente? Se considerarmos os dois exemplos parece que
o acontecer, a organização espacial e a ordem temporal dos fenômenos, dependem
e não dependem do sujeito. Dependem então da coisa em si? Mas se dependerem
dela então ela já se torna espaço-temporal.
Considerando,
com pouca alteração, um outro exemplo de Russell, imagine que você ouve uma
pessoa fazendo uma pergunta; a fala dela é anterior à sua audição, da qual se
segue a sua réplica, após a qual vem o ouvir da pessoa no mundo objetivo da
física. Essa ordem temporal não é determinada por você, o que parece demonstrar
a objetividade e independência do tempo físico. Esse exemplo também ilustra a
dificuldade de se trazer o mundo público, no qual as pessoas interagem umas com
as outras, para dentro do espaço e tempo supostamente subjetivos.
Apesar de todo o maquinário conceitual
construído por Kant, a estética transcendental pouco tem de convincente. Como
pode o sujeito da experiência determinar o espaço e o tempo físicos, se essas entidades
claramente não dependem dele? A física moderna não teria descoberto que onde há
corpos materiais massivos o espaço físico segue uma geometria elíptica se o
espaço fosse imposto pelo sujeito como a forma da intuição sensível. Há
certamente um espaço dependente da mente, constituído por imagens mentais dadas
na percepção ou produzidas pela imaginação, assim como uma consciência
psicológica do passar do tempo. Nesse caso, tanto o tempo quanto o espaço poderiam
ser respectivamente tratados como “formas do sentido externo e interno”. Mas
esses não são nem o espaço medido por fitas métricas, nem o tempo contado pelos
relógios, mas entidades psicológicas secundárias, que dependem dos espaços e
tempos físicos para se tornarem reflexos nem sempre confiáveis dos últimos e
mesmo para se tornarem em algum sentido mensuráveis. Para Russell Kant
confundiu o espaço e o tempo psicológicos secundários com o espaço e o tempo
reais dos quais eles dependem.
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Passemos
agora à segunda parte da Crítica, a analítica transcendental.
Assim como a estética transcendental tinha a ver com as intuições sensíveis, a
analítica transcendental tem a ver com conceitos do entendimento. Como já fiz
notar, para Kant intuições e conceitos são complementares, pois intuições só se
tornam cognitivamente acessíveis quando conceptualizáveis e conceitos não
ancorados em intuições nada nos dizem. Como ele com razão escreve:
As intuições sem os conceitos e os conceitos sem as
intuições não produzem conhecimento. Os conceitos sem as intuições são vazios e
as intuições sem os conceitos são cegas.
O
objetivo original da analítica transcendental é, através da revolução
copernicana, provar a verdade necessária e universal das leis da natureza, como
as grandes descobertas feitas pela física de Newton, que Kant ainda podia
considerar verdades absolutas. Para Kant isso só é possível se o intelecto puder
impor suas leis ao mundo tal como ele nos aparece (como fenômeno) e não tal
como ele é em si mesmo (como noumena). Assim, o intelecto precisa impor
suas leis à experiência. Contudo, o caminho que para Kant conduz a isso é mais
encarpado do que o leitor possa imaginar.
A atividade do entendimento não é mais a de
intuir, mas a de formar juízos sobre o que é dado à sensibilidade. O trabalho
dos juízos é o de unificar a experiência formando sínteses a partir das
intuições sensíveis. Os diversos modos
gerais pelos quais o entendimento sintetiza a experiência são determinados por
“superconceitos” que são as categorias kantianas, com as quais ele
pretendeu substituir as categorias de Aristóteles. Uma diferença é que enquanto
para Aristóteles as categorias pertenciam ao domínio do ser, ou seja, da
realidade objetiva (legis entis), as categorias de Kant pertencem ao
domínio do sujeito (legis mentis), dado que é ele quem às impõe ao mundo
da aparência fenomênica. Outra diferença é que enquanto em Aristóteles as
categorias foram estabelecidas de maneira meramente rapsódica, Kant às fez
derivar de uma modificada tábua dos juízos herdada da lógica clássica seguindo
o que chamou de uma dedução metafísica das categorias.
As categorias ocupam na analítica o mesmo
lugar que o espaço e o tempo na estética. Na estética tratava-se das formas a
priori de toda a sensibilidade. Na analítica trata-se das leis a priori que estruturam
todo o pensamento. As coisas, para serem intuídas, precisavam ser submetidas às
formas da intuição sensível. Mas para serem pensadas precisam, além disso, ser
submetidas às leis do pensamento. No que se segue apresento a tábua dos juízos tal
como ela foi proposta por Kant, seguida das categorias que neles se encontram
incorporadas:
ESQUEMAS: JUÍZOS: CATEGORIAS:
Singulares totalidade
Quantidade particulares pluralidade
Universais unidade
afirmativos realidade
Qualidade
negativos negação
Infinitos limitação
categóricos substância/acidente
Relação hipotéticos causa/efeito
disjuntivos ação recíproca
problemáticos possibilidade/impossibilidade
modalidade assertóricos existência/inexistência
apodíticos
necessidade/contingência
As categorias são conceitos gerais que se encontram
implícitos em tudo o que pensamos. A ideia de retirar conceitos fundamentais
das formas dos juízos sempre me pareceu um importante insight, ainda que
seu desenvolvimento seja questionável em detalhes. Um exemplo pode ajudar a
mostrar como a coisa funciona. Digamos que eu faça o seguinte juízo: “Esta rosa
é vermelha”. Trata-se de um juízo singular, afirmativo, categórico e
assertórico. De modo correspondente, as categorias aplicadas são respectivamente
as de totalidade (trata-se de um todo), realidade (o referente é real),
substância (a rosa), acidente (é vermelha), e existência (a rosa existe). Se o
juízo for “Se um metal é aquecido então ele se expande”, as categorias
aplicadas são respectivamente as de unidade, causalidade, realidade e
existência. Há arbitrariedades evidentes, como o fato de que os juízos
singulares e universais poderiam conter inversamente as categorias de unidade e
pluralidade. Além disso, a simetria das tríades é uma invenção questionável...
Não
satisfeito com a dedução metafísica (quid factum) da tábua das categorias,
Kant decidiu apresentar uma dedução transcendental (quid juris)
justificadora de sua aplicação universal. Essa dedução é a parte mais
indevassável da Crítica. Há diferentes
versões, mas vou tentar resumir o mais essencial em poucas palavras. A dedução pode
começar com a observação de que nosso entendimento opera através de sínteses ou
combinações do múltiplo dado na intuição. Isso é bem exemplificado nas sínteses
que dependem da apreensão do múltiplo seguida de sua reprodução ou retenção na
imaginação e de sua recognição como sendo o mesmo. As sínteses inevitavelmente
envolvem a aplicação das categorias. Elas pressupõem, obviamente, o objeto do
conhecimento e, por consequência, um sujeito do conhecimento. Além disso, nosso
conhecimento não é constituído de elementos separados entre si, mas forma um
todo unitário. É preciso, pois, que exista algo capaz de unir nossos
juízos sobre o mundo. Ora, esse algo só pode ser o Sujeito do conhecimento,
dado que é ele o detentor das leis e formas que devem impor ordem ao mundo
fenomênico. O Sujeito do conhecimento, que tem como contraparte o objeto da
experiência precisa, pois, existir como condição necessária para garantir a
unidade da experiência. Ora, para isso é necessário que todas as
experiências possam ser acompanhadas por um mesmo sujeito, um mesmo “eu
penso”. Como ele escreve:
O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações (...)
uma vez que as múltiplas representações presentes em determinada intuição não
seriam minhas se não pertencessem todas à minha autoconsciência. De outro modo
o meu eu seria tão vário e colorido quanto são as representações que formo.
Esse eu
apreendido no “eu penso” não pode, porém, ser um eu empírico humiano,
pois esse último é um eu multicor, constituído por feixes de intuições que se
sucedem umas às outras, sendo diverso a cada nova experiência. O eu pensante tem de ser um único. Ele está para Kant sempre acima e
além da experiência, uma vez nada do que é dado à experiência pode lhe fazer
parte, tornando-se no melhor dos casos parte do eu empírico. Esse Eu deve ser o que Kant chama de unidade transcendental da
apercepção, um X noumênico cuja assunção é minimamente uma necessidade
lógica para que possamos ter a consciência de nossas sínteses como pertencentes
a um único sujeito da experiência. Esse X noumênico é também uma atividade aperceptiva,
sintetizadora do múltiplo da intuição sensível. A unidade sintética da apercepção dele decorrente é necessária à
aplicação das categorias porque os juízos só são plenamente reconhecidos se
forem integrados na unidade de uma consciência. Finalmente, como o eu pensante
realiza as sínteses do entendimento só através de juízos e os juízos contém as
categorias, todo nosso entendimento demanda a aplicação das categorias.
6
Quero agora expor uma maneira de reconstruir o insight
de Kant que lhe retira a postulação indébita de um Eu transcendental noumênico,
colocando esse Eu de par em par com um eu empírico Humiano. Como já vimos, Hume
havia admitido que o eu empírico também poderia ser considerado como uma
comunidade que com o tempo se altera, recebendo e perdendo membros, mas que ainda
assim continua sendo identificável como sendo a mesma. Considerando essa forma
menos fugaz de eu empírico, ele seria constituído de uma multiplicidade de características
capazes de serem tornadas conscientes, as quais são caracterizadores de um eu
como sujeito individual. Certamente isso existe. Eu sou capaz de me identificar
como um sujeito que possui tais e tais características emocionais, tais e tais
capacidades mentais, disposições e habilidades, memórias, coisas que parecem
mais fundamentais a mim mesmo e que constituem meu eu como auto-imagem. Pessoas
que me conhecem são capazes disso. Esse eu empírico como auto-imagem, esse
eu-comunitário, é muito diverso do eu empírico fugaz e variável considerado por
Kant, que é o mesmo que o “feixe de percepções que se sucedem” notado por Hume.
Ele é uma comunidade de propriedades geralmente disposicionais que permanece a
mesma diante das variadas representações que lhe são dadas.
A observação desse ponto conduz ao seguinte
argumento: sempre que me proponho a refletir sobre minhas propriedades
disposicionais permanentes, eu mesmo sou distinto dessas características que
observo ou das quais me recordo. E quando tento me aprofundar mais em mim
mesmo, este eu que está pensando se encontra sempre acima e além dos segmentos
do eu empírico presentemente à minha disposição. Ora, esse eu é o mesmo que
acompanha todas as minhas representações e que nunca pode ser como um todo pensado.
Mas não se trata aqui do eu transcendental kantiano, pertencente ao mundo
noumênico, mas do eu-comunitário complexo e disposicional que constitui minha
auto-imagem!
Em outras
palavras: há uma maneira diferente de se explicar a questão do mesmo eu capaz
de acompanhar todas as minhas representações, a qual elimina a necessidade do
recurso a um eu transcendental. Suponhamos, para simplificar, que os atributos
que constituem meu eu empírico comunitário possam ser agrupadas no seguinte
conjunto: {C1, C2, C3... Cn}. Ora, é um fato inegável que quando sou capaz de
obter acesso empírico introspectivo a mim mesmo, esse acesso é sempre parcial.
Sou capaz, vez que outra, de ter acesso a características recorrentes de minha
pessoa como, digamos, C1, ou C8, mas não do todo. Mas é preciso notar que esse
eu empírico permanente provedor de minha auto-imagem e constituído por {C1, C2,
C3...Cn} nunca é capaz de ter acesso completo a ele mesmo como {C1, C2, C3...
Cn}, supostamente porque para tal ele teria de se duplicar sobre si mesmo. (A
situação aqui lembra a do barão de Münchhausen, que para ultrapassar um muro
alto pôs seus pês sobre os seus ombros e, subindo neles, foi capaz de passar
para o outro lado.) Seja como for, é um fato que não somos, por razões
estruturais, capazes de ter uma experiência completa de nós mesmos. Tudo o que
podemos produzir são construtos, auto-imagens, quadros mnêmico de atributos
auto-identificadores resultantes de introspecções passadas, combinado com
informações provenientes da interação com outras pessoas, etc. Esse quadro
mnêmico pode inclusive ser distorcido e muito frequentemente ele o é, pois é quase
inevitável produzirmos concepções idealizadas de nós mesmos.
Mas que dizer
do “eu penso” que acompanha todas as minhas representações, ou seja, da
consciência que sempre tenho de mim mesmo como o sujeito da experiência? Essa
consciência não é de uma experiência intuitiva, pois esse não é {C1, C2, C3...
Cn} nem sequer de partes disso. De fato, quando penso que sou sujeito de minhas
experiências nada de específico se passa em minha mente. A resposta que me
parece plausível é que, uma vez que já tive a consciência introspectiva de meu
eu comunitário {C1, C2, C3...Cn}, eu tenho a consciência de que posso
atualizar tais representações de mim, mesmo de modo que a consciência atual que
tenho de mim mesmo quando penso se resume a isso. A consciência imediata de um
eu como eu pensante nada mais é do que a consciência de um “algo” do qual já
tive consciência, minha auto-imagem como C1, C2, etc. que não se atualiza. Nada
demais nisso, pois temos frequentemente a consciência de memórias que não
precisamos ou mesmo que não podemos atualizar. Uma consequência desse modo de
pensar é que um sujeito incapaz de introspecção, como é o caso de muitos
animais, não será capaz de ter a consciência de si demandada por Kant. Para que
eu me pense presentemente como um eu pensante é preciso que antes já tenha tido
alguma experiência introspectiva de características reiteradas de mim mesmo.
Para
concluir, o eu empírico pode ser entendido de três maneiras:
(i)
como o eu
humiano fugaz entendido como “o feixe de percepções que se sucedem” (Hume);
(ii)
como o eu em
sua constituição como auto-imagem, como um conjunto mais ou menos
organizado de características pelas quais uma pessoa se auto-identifica;
(iii)
como a
consciência que uma pessoa tem de si mesma como sujeito que possui (ii) sem que
para isso eu precise atualizar características de (ii) na memória. Esse sentido
(iii) é o que Kant erroneamente toma como sendo a unidade transcendental da
consciência.
Com isso temos explicada a suposta diferença entre o
eu empírico e o Eu transcendental – o X que acompanha todos os meus
pensamentos. O eu empírico fugaz considerado por Kant é (i), enquanto o que ele
pretende que seja o Eu do “eu penso”, responsável pela unidade transcendental
da autoconsciência, não é mais do que (iii), ou seja, a simples consciência que
a pessoa possui de ter uma auto-imagem, por limitada que seja, em oposição aos
objetos de sua experiência. Com isso o suposto eu noumênico pretendido por Kant
pode ele mesmo passar à categoria de ilusão. Tudo se resume a propriedades
internas que geralmente não são, mas que podem ser atualizadas.
8
Na parte seguinte da Crítica, intitulada analogias
da experiência, Kant tenta estabelecer os princípios reguladores que nos levam à
descoberta das conexões empíricas da física newtoniana. Contudo, aqui seus
argumentos são outra vez em boa parte contestáveis. Por exemplo, ele tenta
demonstrar seu princípio a priori de que a causalidade é condição necessária
para a experiência pelo fato de que a ordem subjetiva das percepções é
reversível enquanto a ordem objetiva é irreversível. Disso ele conclui que
porque a ordem das nossas percepções é como tal necessária, as mudanças
apropriadas no objeto precisam ser causalmente determinadas. Mas a constatação
de que a ordem irreversível das percepções é necessária é falsa. Afinal, nada
garante a sua irreversibilidade, tanto quanto para Hume nada garante a
causalidade. As ocorrências que se dão em um sonho e em uma alucinação também
são irreversíveis, tais como as ocorrências dos fenômenos pela alma enganada
pelo gênio maligno, que dispôs a ordem fenomenal ao seu gosto.
Um
outro argumento frágil é sua suposta refutação do idealismo. A experiência
interna só é possível pela experiência externa. Logo, se tenho consciência de
minhas próprias experiências é porque há objetos exteriores a mim... além disso
a percepção de minha existência no tempo só é possível sob a assunção da
existência de algo fora de mim. O problema com esse argumento é que um gênio
maligno não teria dificuldade alguma em produzir em nós experiências internas
como se fossem externas, incluindo nisso a percepção de um tempo supostamente
objetivo.
9
Há uma maneira forte e uma maneira fraca de se
interpretar a Crítica. A primeira pode ser dita mentalista-fisicalista,
enquanto a segunda pode ser chamada de conceptualista. A interpretação
feita até aqui é mentalista-fisicalista. Mas a maneira de se entender a Crítica
privilegiada por muitos intérpretes contemporâneos é a conceptualista, uma
vez que ela salva o texto de grandes incoerências.
Segundo a interpretação forte a unidade
transcendental da consciência deve ser entendida como um Eu transcendental que
seja uma pura atividade sintetizadora. Espaço, tempo e categorias são vistos
como puramente subjetivos. A coisa em si (o domínio noumênico) seria alguma
coisa incognoscível, mas existente, real. Segundo essa interpretação, somos
literalmente os legisladores da natureza. Essa maneira de ver torna a Crítica
incoerente: a coisa em si passa a ser tratada como objeto de aplicação da
categoria causalidade e mesmo das categorias de realidade e existência. Ela é
vista como algo real a causar os estados fenomenais. Contudo, as categorias
foram feitas para serem aplicadas ao mundo fenomênico, sendo isso o que garante
a aplicabilidade de nossos juízos sintéticos a priori.
Diante desses
problemas, a maneira de salvar a Crítica de inconsistências parece ser a
interpretação conceitual. Segundo essa interpretação, o texto de Kant seria
algo como uma detalhada análise do conceito de experiência. Sob essa perspectiva,
o conceito de unidade transcendental da consciência passa a dizer respeito à
condição lógica de possibilidade do trabalho de síntese. O conceito de coisa em
si, por sua vez, torna-se um conceito limitador: o entendimento limita a
sensibilidade ao dar o nome de coisa em si às coisas consideradas fora do
domínio experiencial.
A
interpretação conceitual encontra dificuldades textuais: Kant escreve que os
nossos sentidos são afetados pelos objetos... Isso parece envolver a
ideia de que objetos noumênicos são de fato coisas que causam as sensações. O
intérprete conceptualista é, porém, livre para expurgar da crítica elementos
secundários e problemáticos. Ele dirá que quando falamos de noumena
estamos fazendo uso de um simples conceito limitador. A coisa em si é o
inseparável correlato do fenômeno, existindo assim como o outro lado de uma
mesma folha de papel, o lado que não podemos ver! O noumenon é “a coisa que aparece
sem o seu aparecer”... O problema é que essas metáforas são insatisfatórias: o
outro lado da folha de papel pode ser visto e descrito, a coisa em si não. Como
notou Wittgenstein, o conceito de fronteira exige que sejamos capazes de pensar
o que está do outro lado dela. O conceito de um limite que só contém o lado de
cá parece incoerente. E falar da coisa que aparece à parte o seu aparecer
parece pura retórica. Assim, o conceito de coisa em si, tal como Kant
supostamente o pensou, parece inconsistente e no final das contas
ininteligível.
Afora isso, a
Crítica não é um livro de lógica formal. Ele visa explicar processos
cognitivos que se dão no tempo. Se abstraímos do conteúdo de conceitos como o
do eu pensante e da atividade de síntese dele proveniente, o que resta é um espúrio
esqueleto estrutural.
8
Na analítica dos conceitos Kant deu uma importante
contribuição à filosofia sobre a qual vale a pena chamarmos atenção. Para ele
os conceitos são capacidades para classificar e ajuizar, de modo que ele via os
conceitos como habilidades governadas por regras. Como você deve estar
lembrado, os empiristas tendiam a interpretar conceitos como imagens mentais.
Essa maneira de ver sempre foi problemática. Afinal, para identificar uma
imagem parece que precisamos presumir seu conceito. Além disso sempre foi
difícil explicar ideias gerais e abstratas. Com a noção de conceito como envolvendo
essencialmente a noção de regra esse problema desaparece. As regras conceituais
possuem critérios de aplicação que podem demandar a construção de imagens, mas
agora de forma inteiramente flexível. Por exemplo: se defino o conceito de
triângulo como “figura plana fechada formada por três semi-retas que se tocam em
suas extremidades”, tenho uma regra cujos critérios de aplicação me permitem
formar imagens de triângulos retângulos, equiláteros, isósceles e escalenos.
Não caio assim no problema criado por Locke de imaginar um triângulo que seja
tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Outro exemplo pode ser dado pelo
conceito de cadeira. Podemos defini-lo como “um banco não veicular com encosto
feito para uma só pessoa se sentar de cada vez”. A regra aqui expressa me
permite imaginar cadeiras de balanço, cadeiras de rodas, cadeiras elétricas,
poltronas e tronos com satisfazendo os critérios dados pela definição. Mas
coisas como sofás, assentos de carro e de avião, cadeiras esculpidas pelo vento
na rocha são excluídas dos critérios da regra conceitual.
Na
continuação da analítica Kant descobre que os conceitos puros do entendimento e
as intuições sensíveis são completamente heterogêneos. É necessária uma
ponte que ligue as categorias às intuições fenomênicas, permitindo sua
aplicação. Essa ponte precisa ser algo homogêneo tanto às categorias quanto à
intuição fenomênica. Trata-se aqui do que Kant chamou de esquematismo.
Mesmo conceitos mais comuns possuem seus esquemas particulares, como o conceito
de cachorro. Kant pensa que podemos fazer um esquema empírico de um cachorro
como um pequeno animal quadrúpede e que isso nos permite identificar cachorros
e aplicar o conceito de cachorro ao animal. Esse é um produto da imaginação
empírica que parece regredir ao triângulo que é tudo e nada de Locke. Com as
categorias não é muito diferente. Para cada categorias há um esquema temporal
próprio, por exemplo: para a categoria de substância temos a permanência no
tempo (substância é o que permanece o mesmo); para a categoria de causa e
efeito temos a sucessão temporal do múltiplo segundo uma regra; para a
categoria de ação recíproca temos a simultaneidade temporal; para a categoria
de realidade temos a existência de um objeto no tempo; para a categoria de
necessidade temos a existência de um objeto em todos os tempos. É interessante
compararmos aqui o esquematismo de Kant com a ideia defendida por Michael Dummett e retomada por Ernst
Tugendhat,
segundo a qual conceitos são basicamente regras criteriais de identificação de
nomes próprios ou de aplicação de predicados. Essas regras criteriais podem
demandar a formação de elementos espaço-temporais imagéticos como critérios de
sua aplicação.
10
Chegamos, por fim, à dialética transcendental. Seu
objeto de estudo é a atividade da razão. A razão é a capacidade de relacionar
juízos fazendo inferências. O objetivo de Kant é duplo: investigar a razão em
si mesma e investigar os usos ilusórios da razão. A razão pura se constitui
para Kant no esforço de unificar, associando sequências de juízos introduzidos
em raciocínios silogísticos, na busca de sínteses cada vez mais amplas, com o
objetivo último e inatingível de unificar toda a experiência. A razão procura
uma explicação última para tudo e faz isso guiada pelo que Kant chamou de ideias
transcendentais da razão. Essas ideias da razão são conceitos diretivos,
ou seja, conceitos que não possuem objeto dado na intuição sensível, alcançando
apenas o nível do entendimento, mas que tem a função de orientar o raciocínio.
As ideias da
razão são arranjadas em três classes:
A primeira contendo a unidade absoluta (não-condicionada) do sujeito
pensante; a segunda a unidade absoluta da série das condições da aparência; a
terceira, a unidade absoluta da condição de todos os pensamentos em geral.
Essas formas da razão são respectivamente as da Alma,
Mundo e Deus, usadas em sentido técnico. A ideia de alma orienta
o raciocínio em direção a uma unidade absoluta que só poderia ser preenchida
por um sujeito incondicionado noumênico que está além da esfera da experiência
possível. Seu modelo de raciocínio (segundo Kant) é o do silogismo categórico:
“Todo M é P, Todo S é M; logo, todo S é P”. A ideia do mundo orienta o
raciocínio em direção à unidade formada por um incondicionado noumênico também
situado além da experiência possível. Seu modelo de raciocínio é o do silogismo
hipotético: “Se A então B, A é dado; logo: B”. E a ideia de Deus orienta os
raciocínios em direção a uma unidade absoluta que seria um incondicionado
noumênico determinante tanto do mundo quanto da alma. Ela depende do silogismo
disjuntivo: “A ou B, não-A; logo: B”.
Como chegamos
a essas ideias? O que elas são? A resposta é: pela tentativa de tornar as
premissas absolutas. Sempre que raciocinamos precisamos de premissas. Mas as
conclusões só serão verdadeiras se as premissas também o forem. Mas então
precisamos de novos raciocínios, novas inferências para justificar essas
premissas e assim por diante... A razão procura por uma base absoluta para as
premissas, o incondicionado, mesmo que nunca possa encontra-lo. Eis um
exemplo exposto por Kant em um silogismo:
Todos os homens são mortais.
Todos os scholars são homens.
Logo: todos os scholars são mortais.
A conclusão se segue da premissa maior e da menor. Mas
podemos nos perguntar pela razão da premissa maior, considerando-a como a
conclusão de um pró-silogismo:
Todos os animais são mortais.
Todos os homens são mortais.
Logo: todos os homens são mortais.
Com isso unificamos juízos como “Todos os elefantes
são mortais” e “Todos os répteis são mortais”. Mas podemos agora prosseguir
submetendo a premissa “Todos os animais são mortais” a um processo similar,
exibindo-a como a conclusão de um pró-silogismo cuja premissa maior seja “Todos
os seres vivos são mortais”, com o que unificaremos uma gama ainda maior de
juízos.
A razão,
diversamente do entendimento, não produz juízos. Mas ela conecta os juízos uns
aos outros em um processo de justificação que não tem fim. A máxima lógica da
razão é proceder “sempre mais para cima” em busca de unificações cada vez
maiores, progredindo sempre em direção a uma suposta premissa que não seja
condicionada por nenhuma outra. A razão busca sempre o incondicionado, mas tudo
o que ela encontra é o condicionado, uma vez que o incondicionado nunca pode
ser dado à experiência. Daí o lamento de Novalis: “Buscamos por toda parte o
incondicionado e encontramos somente coisas”.
Vale lembrar
aqui que Karl Popper aplicou a sugestão de um conceito diretivo à ideia de uma verdade
absoluta. Para ele teorias científicas com o mesmo escopo podem ter maior
ou menor verossimilhança com relação a um ideal de uma verdade absoluta. Assim,
a teoria da gravitação na relatividade generalizada tem maior verossimilhança
com o ideal de uma verdade absoluta do que a teoria newtoniana da gravitação.
Afinal, apesar de possuírem o mesmo escopo, a primeira explica a deflexão da
luz por campos gravitacionais, a precessão exata de Mercúrio, etc., o que a
teoria newtoniana não é capaz. Mas, nota Popper, mesmo que chegássemos pela
ciência à verdade absoluta, não seríamos jamais capazes de identificá-la como
tal, uma vez que não poderíamos saber se novas experiências não nos forçariam a
questioná-la.
11
Chegamos agora à parte negativa da dialética, a
crítica das ilusões da razão que constituíam o que era considerado como
metafísica dogmática por Kant. Para ele as ideias da razão não são nem
derivadas da experiência, como pensaria um empirista como Locke, nem são
representações da coisa em si, como poderia ter pensado um racionalista como
Descartes. Dentro do escopo da razão pura as ideias de alma, mundo e Deus tem
como única função unificar juízos, sem serem capazes de se referir a
absolutamente nada. É nesse ponto que entram em questão as ilusões da razão.
Por não atentar para essa função meramente diretiva e por tratar as ideias da
razão como se elas se elas fossem conceitos ordinários referindo-se a coisas em
si ou a fenômenos, filósofos foram induzidos a realizar investigações
equivocadas sobre a existência da alma, da origem do mundo e da existência e
natureza de Deus.
Para Kant a
psicologia especulativa produz ilusões concernentes à ideia de alma, como se
nos fosse possível conhecer um eu absoluto como objeto noumênico. No tocante à
ideia de alma, a razão produz um paralogismo que consiste em considerar o “eu
penso” unificador a consciência como se ele fosse um substrato unificador
substancial acessível à experiência. Contudo, a categoria de substância só pode
ser aplicada aos dados sensíveis, mas nunca ao sujeito de todo o pensamento. A
cosmologia especulativa produz ilusões sobre a ideia do mundo, como se fosse
possível conhecer a coisa em si como fenômeno ou como objeto noumênico. E a
teologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de Deus, como se fosse
possível conhecer a causa noumênica tanto do sujeito quanto do objeto
fenomenal.
Não pretendo
discutir aqui em qualquer detalhe os argumentos de Kant com respeito aos
paralogismos ou às antinomias. Quero considerar apenas a famosa crítica feita
por Kant ao argumento ontológico de Anselmo para provar para a existência de
Deus, uma vez que ela está na origem de uma linha de pensamento importante com
respeito ao conceito de existência. Para Anselmo Deus é o que de maior pode ser
pensado. O tolo (i.e., o ateu) afirma que Deus não existe. Mas ao dizer
isso ele pressupõe a possibilidade de que exista algo maior do que o que de
maior pode ser pensado, ou seja, o Deus existente. Mas isso é contraditório.
Logo, Deus existe.
Para Kant o problema com o argumento se
encontra no fato de que a existência não é um predicado. Por isso a
atribuição de existência não adiciona nada ao conceito: a existência de 100
táleres nada adiciona ao conceito de 100 táleres. Não é certo, porém, que a
existência não seja um predicado. Mais adequado seria dizer que a existência
como um predicado de ordem superior. Gottlob Frege percebeu isso. Para ele a
existência é a propriedade de uma função conceitual de que sob ela cai ao menos
um objeto. Por exemplo, quando digo que a Lua da terra existe, estou dizendo
que ao menos um objeto cai sob o conceito de Lua da terra. Como a função conceitual
já é uma propriedade, a existência passa a ser aqui uma propriedade de segunda
ordem, uma propriedade-propriedade. Melhor dizendo: ela é a propriedade de
certas propriedades que atribuímos predicativamente a um objeto.
Posso explicar melhor o que
acabei de dizer usando um pouquinho de lógica predicativa. Considere o enunciado:
“Cavalos existem”. Esse enunciado pode ser lido como “Existe ao menos um x, tal
que x é um cavalo”, ou ainda: “Ex(Fx)”, onde ‘E’ = existe e ‘F’ = cavalo. O F entre
parêntese designa a propriedade de x de ser um cavalo. E o quantificador
existencial E tem como objeto a propriedade F de x, ou seja, ele é apenas uma
propriedade de segunda ordem de x, ou seja, uma propriedade-propriedade de x.
Há uma maneira mais completa de
se entender a existência, baseada em Michael Dummett e Ernst Tugendhat, que posso
expor aqui. Para Frege um predicado exprime um sentido, que por sua vez deve
ter uma referência. Frege nunca explicou o que seria o sentido de um predicado.
Mas o entendimento mais natural seria aquele no qual o sentido do predicado
seria o conceito, a regra conceitual, sendo a referência a propriedade
do objeto referido pelo sujeito em enunciados predicativos singulares,
enunciados do tipo Fa. Isso nos sugere que a existência nada mais seja
do que uma propriedade da regra conceitual, qual seja, a propriedade da efetiva
aplicabilidade da regra conceitual expressa pelo predicado! Com a expressão
‘efetiva aplicabilidade’ não quero dizer uma simples possibilidade de
aplicação, mas uma aplicabilidade que pode ser tida como certa, dadas as
condições adequadas. Para que seja excluída a aplicabilidade meramente
hipotética, melhor dizer que a existência é a efetiva ou garantida
aplicabilidade da regra de atribuição de um predicado. A aplicabilidade pode
ser garantida por verificação (ex: o cavalo branco no estábulo existe porque eu
o vi), mas também por sua coerência outros enunciados (como essa é uma escola
de equitação, eles devem ter cavalos). Note-se que não é necessário para a
existência que existam sujeitos epistêmicos capazes de aplicar a regra. A
existência não é um conceito antropomórfico. Além do mais, não é necessário
sequer que as regras conceituais em questão existam. O importante é que, caso elas
existam e caso existam sujeitos cognitivos em condição de aplicá-las, elas se
demonstrem garantidamente aplicáveis.
Uma objeção importante ao que
acabei de dizer se encontra na ideia de que se considerarmos a existência como
a propriedade de uma regra conceitual parece que ela é algo que se encontra
flutuando acima do objeto do qual afirmamos existência. A alternativa a isso é
considerar a existência como uma propriedade disposicional do
objeto em consideração, qual seja, a propriedade do objeto de ter a sua regra
conceitual garantidamente aplicável a ele caso ela for usada sob condições
adequadas. Há objetos que não possuem essa propriedade disposicional, objetos
meramente imaginários. Por exemplo, a Torre de Babel. Mas outros objetos, como
a Pirâmide de Quéops, possuem essa propriedade. Por isso a Torre de Babel não
existe, enquanto a pirâmide de Quéops existe. Nesse caso a existência passa a
ser a propriedade de um objeto pertencente a certo domínio, não importa qual,
de ter a sua regra de identificação garantidamente aplicável a ele.
Claro, em um contexto ficcional
a Torre de Babel será um objeto existente, pois esse objeto ficcional possui a
disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si
mesmo no contexto bíblico. Com isso explicamos também porque podemos dizer que
tudo existe, uma vez que qualquer coisa concebível pode ter a disposição de ter
sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesma. E com isso
explicamos, por fim, porque podemos dizer que a própria existência existe. É
que a disposição de uma regra de identificação de ter uma regra de
identificação de ordem superior garantidamente aplicável a si mesma também
existe.
12
A presente exposição do pensamento kantiano restará
incompleta se não considerarmos ideias e conclusões de sua crítica da razão
prática. Para Kant, assim como existe uma razão pura teórica, existe também uma
razão pura prática, que tem por objetivo investigar o que ele vê de a priori na
determinação das decisões e ações humanas.
Aqui o compromisso kantiano com o racionalismo
torna-se patente. Tudo aquilo que ele rejeitou ao criticar a razão pura teórica
ele passa a aceitar em sua razão pura prática. E o que ele irá criticar aqui é
a razão “impura” prática, ou seja, aquelas éticas que colocam as origens da
moral na experiência empírica, como acontece com as éticas que colocam o bem no
prazer (hedonismo), nas ações onde prevalece o bem maior para todos (o
utilitarismo) ou na felicidade humana enquanto tal (eudemonismo). Para ele
essas concepções obedecem ao que ele chama de imperativo hipotético, que
tem a forma: “Se queres obter X deves fazer Y”. O imperativo hipotético é
teleológico, imiscuindo questões empíricas na teoria moral, o que para ele a
faz deixar de ser necessária e universal. Para que a moralidade tenha valor
absoluto ela deve, pois, obedecer à lei pela própria lei e não por algum outro
motivo. O imperativo categórico último é para ele o do dever: devemos obedecer
às leis morais. A forma do imperativo categórico é: “Devemos fazer X pelo
simples dever de fazer X”.
Para que o imperativo categórico se torne
factível Kant apresentou três formulações explicitadoras interligadas, que
servem como meta-regras a serem aplicadas às máximas embutidas nas ações de
modo a estabelecê-las como moralmente corretas. Elas são:
1)
Age de forma
que a máxima embutida em sua ação possa ser sempre universalizada para todos os
agentes.
2)
Age de
forma que a tua vontade possa considerar a si mesma como a vontade que qualquer
ser humano estaria disposto a aprová-la como instituidora de uma legislação
universal.
3)
Age de
forma que possas tratar a humanidade, tanto a sua quanto a de outros, sempre
como um fim e nunca como um meio.
Considere, por exemplo, ações como as de mentir ou roubar. Elas contêm
embutidas as máximas de que a pessoa pode roubar, de que a pessoa pode tratar o
próximo como um meio, de que a vontade própria não precisa ser aprovada por
outros seres humanos. Mas essas máximas ferem o imperativo categórico. Não
podemos (1) querer que todos mintam ou roubem, pois logo seremos também
ludibriados e roubados, nem podemos (2) querer que nossa vontade de mentir ou
roubar seja instituída como a vontade que qualquer ser humano quereria
instituir em uma legislação universal. E também parece claro que (3) tratar os
outros como meio, mentindo ou roubando, infringe nossa intuição do que é certo.
Para que o imperativo
categórico seja aplicável ele pressupõe a satisfação de três condições que Kant
chamou de postulados da razão pura prática. Esses postulados são:
1)
A
liberdade: para que o homem possa satisfazer o imperativo categórico ele
precisa ter a liberdade de agir em conformidade com a razão prática, ou seja,
que seja capaz de em suas decisões e ações transcender o determinismo universal
do mundo fenomênico.
2)
A
imortalidade: o ser humano deve ser capaz de progredir em direção a uma
adequação completa de sua vontade à lei moral. Como esse progresso é infinito,
precisamos se dotados de uma duração indefinida, ou seja, de uma alma imortal.
3)
A
existência de Deus. Não há na lei moral nenhum fundamento de uma necessária
ligação entre lei moral e uma felicidade proporcional a ela. Por conseguinte, é
preciso que essa desproporção seja ajustada pela existência de Deus como o
elemento causal necessário à existência do sumo bem (se não somos recompensados
ou castigados pelo que fazemos no mundo fenomenal, isso deverá acontecer quando
nossa alma se encontrar no mundo noumênico).
Aquilo que Kant havia rejeitado como impossível de ser provado através da
razão pura retorna com toda a força em seu exame da razão prática. Com isso nós
chegamos a um resumo geral da concepção de mundo epistemológica, metafísica e moral
de Kant. Hoje essa concepção nos lembra da ferina, mas acertada observação feita
por Bertrand Russell ao notar que Kant exemplifica o fato de que a maioria das
pessoas jamais se libertam das verdades auridas quando se encontravam no seio
materno, de modo que depois de ter sido acordado de seu sonho dogmático por
Hume, Kant logo inventou um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez. Hegel
também percebeu que havia algo de errado, vendo na ética kantiana um subproduto
do pessimismo antropológico luterano. Para ele Kant teria em sua ética desnecessariamente
separado a sensibilidade da razão, transformando o ser humano em uma espécie de
mártir do dever. Mas o ser humano, pensava ele, é um universal concreto, que
deve ser capaz de harmonizar a sensibilidade particular à razão universal, ao
invés de ser repressivamente submetido a ela. Esses julgamentos críticos
parecem confirmados pelas considerações que faremos a seguir.
Uma primeira consideração é que
a pergunta sobre o para que serve o dever é capaz de ser colocada sempre
que nós nos percebemos no dever de fazer alguma coisa. O sentimento do dever
não parece ter, se tomado em isolamento, nada de justificadamente moral. E a ideia
de que temos a intuição do que é certo e do que é errado, do que devemos ou não
fazer, como já notei, pode ser profundamente enganosa. Mahatma Ghandi sentia que
era seu dever fazer greve de fome para conseguir a libertação da Índia. Mas também
Adolf Eichmann sentia que era seu dever obedecer aos seus superiores e organizar
a deportação dos judeus para os campos de extermínio da melhor maneira
possível, mesmo não tendo pessoalmente nada contra os judeus. Nada indica que
tenhamos uma capacidade incondicionada de distinguir o que seja “fazer X pelo
puro dever de fazer X” em um sentido moral. Algo aqui está faltando. E a
resposta natural é que esse algo deve ser a finalidade do dever. As
deficiências da deontologia nos fazem perguntar sobre as razões de seguirmos a
lei, o que nos conduz a uma normatividade justificada pelo valor moral de suas
consequências concretas.
Vejamos agora o que podemos retirar dos três princípios que para Kant
explicitam o imperativo categórico. O primeiro, o da universalização, encontra
um bom número de contraexemplos. São muitos os casos de mentiras benignas. Assim,
imagine que durante a Segunda Guerra um alemão consciente esconde um judeu em
sua fábrica. Quando um oficial nazista bate à porta para saber se ele sabe
alguma coisa sobre o paradeiro de seu ex-empregado judeu, é obvio que ele deve
mentir. Mas para Kant ele deve falar a verdade, pois se mentisse ele
infringiria o imperativo da universalização. Também contraexemplos às duas
outras formulações podem ser facilmente encontrados. Quando um perseguido
político usava um passaporte falso para poder escapar da Lituânia ocupada pelos
nazistas, não é certo que ele deveria tratar o guarda da alfândega como um fim
em si mesmo. Ele deveria tratá-lo como um meio para que pudesse atravessar a
fronteira, tratando-se com isso a si mesmo como um fim. Ou não? Finalmente a
vontade moral das pessoas é muito variável para servir de parâmetro. Uma
vontade comum a todas as pessoas, ou é impossível de ser encontrada, ou é
trivial.
A conclusão é que os princípios
do imperativo categórico de Kant pouco fazem para determinar o comportamento
moral. O que eles podem fazer é servirem como regras auxiliares, regras de
polegar, tal como “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti mesmo”.
E quanto ao imperativo categórico do fazer X
pelo dever de fazer X, cabe a pergunta: quem estabelece o que é o dever? Na
falta de algo mais, quem estabelece o que é o dever é quem tem o poder, na
época de Kant as autoridades de um sistema totalitário. Acontece aqui o que
acaba por acontecer com as deontologias em geral. Não se tem como fundamentar
regras como a dos dez mandamentos, senão recorrendo à autoridade divina. No
caso de Kant, os mandamentos são reduzidos a meta-regras. Se elas forem
literalmente interpretadas elas se tornam rígidas demais, produzindo um número
de valorações morais injustas. Mas se isso não for feito, elas se tornam
abertas a inúmeras exceções, acabando por servir a quem tiver mais poder. O
mesmo acontece com outros sistemas deontológicos. Se estritamente seguidos eles
servirão para impor uma ordem à tribo, mesmo que a custo de injustiças. Mas se
forem interpretados de uma maneira frouxa ele de pouco servem. Deontologias
puras acabam por servir a sistemas éticos de fundamentação autoritária, seja
ela divina ou secular. E o rigor e inflexibilidade morais que daí podem se
seguir são uma porta aberta para o arbítrio.
Devido à inflexibilidade e
relativismo circunstancial dos mandamentos das éticas deontológicas, elas podem
levar a conflitos morais como o descrito por Lawrence em seu livro Os Sete
Pilares da Sabedoria. Ele, um inglês que se doutorou em Oxford, vestido de
árabe e falando a língua local, aceitou o compromisso de liderar a revolta
árabe. Contudo, a todo momento as regras de sua moral refinada se chocavam com os
ditames rudimentares e supersticiosos das tribos árabes. Por vezes a sua
decisão prevalecia, como quando decidiu voltar sozinho para encontrar um árabe
que havia se perdido da caravana e que os outros consideravam morto por decisão
de Alá. Mas na maioria das vezes a moral da tribo prevalecia, como quando foi levado
a matar pessoas já rendidas após o assalto de um trem.
Uma razão pela qual dou
preferência ao utilitarismo de duas camadas brevemente sugerido no capítulo 1
(seção 3) é que por meio dele uma sociedade é capaz de alterar e aprimorar as
regras morais, na medida em que elas promovem o bem geral, e não a partir de
algum dever fundado em uma intuição arbitrária geralmente imposta por alguma
autoridade. Ele tornaria os princípios absolutos sugeridos por Kant em meta-regras
auxiliares geralmente válidas, na medida em que satisfizerem a função de
licitar o seguimento das regras utilitárias definidas como produtoras do bem
geral em um meio social apropriado.
John Searle: “The
Unity of the Proposition”, in Philosophy
in a New Century (Cambridge: Cambridge University Press 2008), p. 176